segunda-feira, 3 de março de 2008

Adriana Falcão em O doido da garrafa

Ele não era mais doido que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido.
Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.
O doido da garrafa fazia passarinhos de papel como ninguém, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com o nome de uma mulher e , enquanto estava trabalhando nele,morria de amores pela dona imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exceção de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser construída.
Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso, músicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais variados gêneros. Vai aí aquela da mulher de blusa de verde atravessando a rua apressada, e o Doido da Garrafa imediatamente compunha um samba, uma valsa, um rock, um rap, um blues, dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando, da rua e do apressada. Geralmente ficava uma obra-prima.
Gostava muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de café, de cantar e de ouvir música. Não gostava muito do fato de ter pernas, mas acabou se acostumando com elas. De cabelo ele gostava. Em compensação, tinha verdadeiro horror a multidão, bermudão, tubarão, ladrão, camburão, bajulação, afetação, dança de salão, falta de educação e a palavra bife.
Escrevia cartas para ninguém, umas em prosa, outras em poesia, como mero exercício de estilo.
Tinha mania de dar entrevistas para o vento e já sabia a resposta de qualquer pergunta que por ventura alguém pudesse lhe fazer um dia.
Ajudava o dicionário a explicar as coisas inventando palavras necessárias como dorinfinita.
Adorava álgebra, mas tinha particular antipatia por trigonometria, pois não encontrava nenhum motivo para se pegar pedaços de triângulos e fazer contas difíceis com eles.
Conhecia mitologia a fundo.
Tinha angústia matinal, uma depressão no meio da tarde que chamava de cinco horas, por que era a hora que ela aparecia, e uma insônia crônica a que chamava carinhosamente de Proserpina.
Sentia uma paixão azul dentro do peito, desde criança, sempre que olhava o mar e orgulhava-se disso.
Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase.
Às vezes falava sozinho, mas só às vezes.
Preferia tristeza à agonia.
Todas as noites, entre oito e dez e meia era visto andando de um lado para outro da rua, método que tinha inventado para acabar de vez com a preoculpação de fazer a volta de repente, quando achava que tinha andado o suficiente. (Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabeça incessantemente a palavra ecumênico sem ter a menor ideia da razão pela qual fazia isso.
Durante o dia o Doido da garrafa trabalhava numa multinacional, era sujeito bem visto, supervisor de departamento, ganhava um bom salário e gratificações que entregava para a mulher aplicar em fundos de investimento.
No fim do ano ia trocar de carro.
Era excelente chefe de família.
Não era mais doido que do que as outras pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, lá vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias garrafas um pouquinho.

Um comentário:

Princesa Ricardo Marinelli disse...

pq será que ele não gosta da palavra bife?